A aplicação do acordo de não persecução penal às pessoas jurídicas
- Ana Luiza Pereira Caldeira, Marina Rios de Oliveira e Yasmin Machado Braga
- há 23 horas
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1 INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo desenvolver uma avaliação crítica a respeito do Acordo de Não Persecução Penal, o qual representa um instrumento importante referente à Justiça Penal Consensual. De maneira mais específica, busca-se analisar a aplicabilidade da medida despenalizadora às pessoas jurídicas, diante da prática de crimes ambientais por esses entes.
Para o desenvolvimento desse estudo é essencial, inicialmente, verificar a possibilidade de se responsabilizar a pessoa jurídica, examinando se o ordenamento e a legislação infraconstitucional admitem a prática da infração penal por entes coletivos. Além disso, impõe-se a apreciação dos requisitos estabelecidos pela própria lei para a imputação e para a configuração da culpabilidade jurídico-institucional da empresa, visto que o reconhecimento da responsabilidade é pressuposto para, ao final, analisar as possibilidades de negociação.
Após essa análise, passa-se para o exame do ANPP, o qual representa instituto importantíssimo da Justiça Penal Consensual. Nesse ponto, serão levantadas as seguintes questões. Primeiramente, um breve histórico, desde o seu surgimento no contexto brasileiro em 2017, por meio da Resolução nº 181 do Conselho Nacional do Ministério Público, até a sua efetiva positivação em 2019, a partir da promulgação da Lei nº 13.964. Posteriormente, um resumo sobre a sua natureza jurídica, os seus requisitos e condições.
Por fim, depois de compreendido ambos os temas separadamente, será avaliada a possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal com pessoas jurídicas. A esse respeito serão formuladas críticas e reflexões.
2 ANÁLISE SOBRE A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA
2.1 Princípio da imputação
Conforme sustenta Kelsen, a norma autêntica[1] é aquela que liga um ato de coação, como sanção, a determinado pressuposto fático. A construção dessa relação entre o fato e a consequência jurídica se dá a partir do princípio da imputação[2], que é responsável pela atribuição da responsabilidade jurídica. Essa relação entre condição e consequência afirmada pela lei era, originalmente, concebida a partir de atos humanos. Entretanto, Kelsen interpreta a imputação como uma punição ao ato que violou a norma, considerando a ação que constitui o crime e não a pessoa. Desse modo, é evidente que a imputação vincula uma punição ao agente que realizou a conduta descrita no tipo, embora a definição desse sujeito seja estabelecida pelo próprio ordenamento jurídico.
Um outro elemento importante na teoria Kelsiana para essa análise é o conceito de dever jurídico, o qual é definido a partir da previsão na norma de que determinada conduta é condição para uma sanção. Nesse sentido, o sujeito que contém o dever é aquele que com sua atuação pode violar a norma e provocar a sanção, ou respeitá-la, evitando a punição. Contudo, a sanção não precisa ser aplicada àquele que violou o dever, aproximando-se de uma lógica de responsabilidade quase objetiva, no sentido jurídico. Essa lógica estabelece que não importa quem praticou o ato, mas quem o direito escolhe como destinatário da punição, ou seja, é possível aplicar a sanção a outro indivíduo, desde que exista uma relação normativa prevista pela ordem jurídica.
Diante do exposto, aplicando a teoria de Kelsen, é possível, a partir do princípio da imputação, compreender a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Isso porque, ao definir o ato como o foco da aplicação da sanção, aproxima-se da lógica do Direito Penal, como explicita Rodrigo Iennaco de Moraes[3]: “a conduta sempre será o ponto inicial da teoria do delito- e o ponto final da imputação”. Nesse sentido, caso o ordenamento permita, é possível definir o ente coletivo como destinatário da punição, mesmo diante da inexistência de vontade psicológica, pois basta existir uma relação normativa que possibilite a imputação da ação de um sujeito a outrem.
Sob essa perspectiva, mesmo diante da prática de infração penal por sócios, dirigentes ou empregados, a empresa pode ser responsabilizada pelo descumprimento do dever jurídico. Essa transferência de responsabilidade a pessoa jurídica é entendida como uma responsabilidade quase objetiva[4], relativa ao critério de imputação, ou seja, ao modo como o ordenamento vincula a conduta material praticada pelos representantes à instituição. Nesse contexto, não se exige a demonstração de dolo ou culpa da empresa enquanto ente psicológico, sendo necessário apenas que os atos dos seus membros tenham ocorrido em nome de um interesse da instituição. É um sistema de imputação que impõe a sanção para um sujeito pela conduta de outrem, mas é permitido uma vez autorizado pela Constituição.
2.2 A responsabilidade jurídica prevista na Constituição Federal
Diante do exposto, a responsabilidade penal da pessoa jurídica é admitida nos casos em que o ordenamento jurídico expressamente permite a correspondência entre a conduta dos indivíduos, que materializaram o crime, e a pessoa fictícia. Sob essa ótica, o § 5º do artigo 173 da Constituição Federal de 1988, diz que:
A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.
Assim, percebe-se que o poder constituinte originário optou pela permissão da responsabilização da pessoa jurídica, a qual deve ser estabelecida por lei, sem prejudicar a responsabilidade individual dos dirigentes, desde que tenha previsão de sanções compatíveis com a natureza da empresa.
Já o § 3º do artigo 225 da Constituição evidencia a responsabilidade penal da pessoa jurídica (RPPJ) para atividades lesivas ao meio ambiente que violem a norma de proteção ambiental, conforme dispõe:
As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Apesar da previsão legal, trata-se de tema extremamente controvertido na doutrina, uma vez que muitos teóricos, estritamente vinculados ao paradigma do finalismo, rejeitam a responsabilidade da pessoa jurídica no âmbito criminal, pois compreendem que o sujeito ativo deve ser: capaz de praticar a ação, dotado de culpabilidade e capaz de sofrer a pena. Diante disso, com o intuito de seguir os ditames constitucionais e superar esse entendimento, deve-se rever o conceito de ação penal[5], que representa a base da teoria do crime.
A ação penal foi concebida, inicialmente, como um movimento físico voluntário, estabelecendo o foco na pessoa física. Posteriormente, o conceito foi ampliado de modo a abranger a ausência de movimento como causa da modificação, distanciando a teoria do crime da base naturalista ao trazer um sistema teórico de base normativa. Isso repercute efeitos na ação penal, que passa a ser um conceito jurídico concebido conforme um determinado sistema de normas. A partir desse momento, tem-se uma concepção significativa da ação penal, permitindo a sua aplicação à pessoa jurídica, uma vez que o foco deixa de ser o ato físico e passa a ser o sentido jurídico que o sistema dá a esse ato, conforme o contexto e a norma aplicável. Com isso, pode-se atribuir significado à atuação da pessoa jurídica, permitindo a sua responsabilização.
Outrossim, uma questão importante para a discussão corresponde aos critérios que devem ser adotados para a determinação da RPPJ. Nesse contexto, foram criados pela doutrina dois modelos, os quais visam alcançar essa pretensão, o da autorresponsabilidade e o da heterorresponsabilidade.
Sob o prisma da construção normativa do § 3º do artigo 225, é expresso que a PJ, bem como a pessoa física, é considerada uma infratora da norma, evidenciando a adoção, pela Norma Fundamental, do modelo de autorresponsabilidade. Segundo essa teoria, a pessoa jurídica é responsabilizada por uma infração normativa própria, não sendo necessário identificar uma conduta lesiva de uma pessoa natural para, então, punir a empresa.
Além disso, ao utilizar o termo “conduta” e “atividade”[6], o próprio dispositivo impõe uma diferença: a conduta pertence a pessoa física e a atividade corresponde a forma pela qual a pessoa jurídica viola a norma. Nesse viés, a atividade se dá por meio da conjugação dos esforços das pessoas naturais que efetiva uma decisão institucional, sendo essa uma ação em nome da empresa, que visa beneficiá-la. Logo, por mais que a imputação utilize um vínculo normativo que se aproxima de um modelo quase objetivo, a autorresponsabilidade exige uma culpabilidade jurídico-institucional da empresa.
Superada a análise do modelo da autorresponsabilidade, passa-se ao exame da heterorresponsabilidade, construção doutrinária fundada em lógica diversa. Esse modelo prevê a transferência da responsabilidade da pessoa física para a pessoa jurídica, de modo que os requisitos da teoria do crime sejam inicialmente verificados na pessoa natural, punindo-se a PJ apenas em razão da conexão com o ato individual. Tal modelo, contudo, acaba por dificultar a responsabilização das empresas, pois, ao impor a necessidade da identificação da conduta de um sujeito natural, parte de uma concepção unitarista da pessoa jurídica, desconsiderando a natureza fragmentada e difusa de seus processos decisórios. Por esse motivo, o modelo da autorresponsabilidade, em conformidade com o texto constitucional, parece o mais adequado para viabilizar a RPPJ.
2.3 A pessoa jurídica na Lei nº 9.605/88
A Lei nº 9.605/88, em seu artigo 3º, estabelece certos requisitos que direcionam a forma de imputação da responsabilidade penal à empresa, conforme estabelece:
As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
Para a interpretação dos dispositivos legais, tem-se como premissa inafastável o entendimento em conformidade com as normas constitucionais. Sob essa perspectiva, partindo de uma leitura sistêmica, o artigo 3º da Lei de Crimes Ambientais deve ser interpretado em consonância com o modelo de autorresponsabilidade penal da pessoa jurídica estabelecido pela Constituição Federal.
Um elemento importante presente no dispositivo supracitado corresponde à exigência do cometimento da infração por decisão de representantes legais ou contratuais, ou de seu órgão colegiado, para que a conduta possa ser atribuída à pessoa jurídica sob o termo de decisão institucional. Tal exigência diferencia a decisão organizacional da simples conduta individual, a qual é compreendida como um ato praticado por deliberação exclusiva da pessoa física, com ausência de decisões sobre as atividades da empresa. No curso da identificação da deliberação, deve-se constatar a relação de causalidade entre a decisão e a realização concreta da atividade que viola a norma incriminadora, verificando-se a ideia da responsabilidade quase objetiva como critério de imputação.
Somado a isso, o ato ilícito deve ser em proveito da pessoa jurídica, abarcando tanto a satisfação de benefícios quanto de interesses. O benefício é a vantagem que se materializa, enquanto o interesse é o vínculo subjetivo entre determinada pessoa e o objeto, ultrapassando a ideia de satisfação econômica. Esse requisito deve ser comprovado e traz uma de forma atribuição do injusto e da culpabilidade à pessoa jurídica, evidenciando, mais uma vez, o modelo de autorresponsabilidade. Por fim, uma exigência implícita impõe a necessidade de que a atividade realizada cumpra a decisão proferida pela PJ.[7] Desse modo, é evidente que tais requisitos asseguram que o ente coletivo seja reconhecido como sujeito de deveres e destinatário legítimo da sanção penal, o que corresponde a uma responsabilidade imputada ao próprio ente.
Dado o argumentado, é valido ressaltar que o modelo optado pelo poder constituinte originário, ao reconhecer que as decisões são difusas e colegiadas e ao desconsiderar a necessidade de identificar a conduta de uma pessoa física para, só então, transferi-la à empresa, acaba por facilitar a efetiva RPPJ e reafirmar as funções preventivas e pedagógicas do Direito Penal. Entretanto, merece registro que o STF na RE 548.181/PR[8] apontou a necessidade da construção de requisitos pré-definidos, que possibilitem o reconhecimento de um injusto e de uma culpabilidade próprios da pessoa jurídica.
3 O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
3.1 Histórico
Após a promulgação da Constituição de 1988, desenvolveu-se no Brasil o chamado neoconstitucionalismo, movimento caracterizado pelo reconhecimento da normatividade e centralidade da Magna Carta, bem como pela busca de concretização e efetividade das normas constitucionais[9]. Nesse contexto, passou-se a exigir do Processo Penal uma feição constitucional-garantista, conferindo-lhe a função de proteger direitos fundamentais do cidadão diante da pretensão punitiva estatal.
Essa nova perspectiva contribuiu para o surgimento de mecanismos capazes de mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, com o intuito de implementar os princípios penais da mínima intervenção e da ultima ratio. Tais instrumentos integram a Justiça Penal Consensual, a qual delega grande valor à celebração de acordos entre o Ministério Público e o autor da conduta criminosa. Nesse cenário, destaca-se o surgimento do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP)[10].
Trata-se de instituto extremamente recente no Brasil que se inseriu no ordenamento jurídico nacional a partir da Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), ampliando as hipóteses negociais que, até então, eram restritas à transação penal, à suspensão condicional do processo e à colaboração premiada. Esta Resolução do CNMP “dispõe sobre instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público” e, em seu art. 18, disciplina o ANPP.
Apesar de inovador, esse ato normativo sofreu duras críticas na época em que foi promulgado. Em primeiro lugar, alegou-se violação a normas constitucionais, em razão da usurpação da competência privativa da União para legislar sobre processo penal. Nesse sentido, boa parte da doutrina exigia a positivação de tal matéria por meio de lei. Em segundo lugar, sustentou-se uma transgressão aos princípios da reserva legal e da imparcialidade, uma vez que não exigia a homologação judicial do acordo, ferindo o sistema de “freios e contrapesos” do processo penal ao conferir autonomia excessiva aos membros do órgão acusatório[11].
Essas observações motivaram a Associação dos Magistrados Brasileiros e a Ordem dos Advogados do Brasil a ajuizarem Ações Declaratórias de Constitucionalidade no STF, gerando um quadro de insegurança jurídica, o que paralisou a aplicação do ANPP no âmbito do Ministério Público. Em razão disso, o CNMP reformou a Resolução nº 181/2017 por meio da Resolução nº 183/2018, a qual, dentre outras mudanças, passou a exigir a homologação do Poder Judiciário para a implementação da medida, nos termos do art. 18, §§ 5º e 6º, do ato normativo. Sob esses novos termos, uma das principais críticas direcionadas à adoção do ANPP foi solucionada. Entretanto, o debate sobre a violação da competência legislativa da União permaneceu, reforçando a necessidade de previsão legal.
A positivação finalmente ocorreu com a promulgação da Lei nº 13.964/2019, que inseriu o acordo de não persecução penal no art. 28-A no Código de Processo Penal. Contudo, nem mesmo a normatização do instituto foi capaz de eliminar todas as objeções. Alguns críticos afirmam que as modalidades previstas de controle judicial sobre o ANPP representam resquícios inquisitoriais que distanciam o instituto da Justiça Consensual, tornando-o inconstitucional[12]. Nesse ponto, a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem entendido que o controle judicial deve ocorrer apenas quando estritamente necessário e de forma excepcional, como diante de vício formal ou ilegalidade manifesta, de modo a preservar a autonomia do Parquet.
No HC 185.913/SP e no HC 194.677/SP, ambos relatados pelo Ministro Gilmar Mendes, o STF fixou que a atuação judicial deve limitar-se à verificação da legalidade formal e da voluntariedade do investigado, sendo vedado qualquer juízo de conveniência ou oportunidade, sob pena de violação à separação de funções no processo penal. No mesmo sentido, o STJ, no HC 590.039/PR e no HC 628.647/SC, reafirmou que a homologação judicial possui natureza meramente declaratória e defendeu a mesma limitação sustentada pelo STF.
3.2 Definição, requisitos e condições
Sob uma perspectiva técnica, o ANPP possui natureza de negócio jurídico processual penal, sendo constituído por três elementos essenciais: agente capaz, objeto lícito e forma prescrita[13]. De acordo com a legislação vigente, trata-se de uma faculdade do Ministério Público, que deve analisar a necessidade e a suficiência da medida para alcançar as finalidades retributivas e preventivas do Direito Penal. O acordo é celebrado entre o MP e o investigado, antes do início da ação, buscando evitar o prosseguimento da persecução penal, com o intuito de promover celeridade, reduzir a sobrecarga do Judiciário e solucionar o conflito sem qualquer imposição de pena. Após homologado e cumprido, resulta na extinção da punibilidade.
Para que o acordo seja firmado entre as partes, o sujeito ativo deve preencher os requisitos previstos no art. 28-A, caput e § 2º, incisos I a IV, do CPP: (i) não ser causa de arquivamento de investigação criminal; (ii) exigência de confissão formal e circunstanciada do investigado; (iii) infração penal não cometida com violência ou grave ameaça; (iv) infração penal com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; (v) o acordo deve ser necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime; (vi) não ser cabível a transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais; (vii) não ser o investigado reincidente; (viii) não haver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; (ix) ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e, por fim, (x) não se tratar de crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.
Para que o acordo seja mantido, o infrator está sujeito a algumas condições (obrigações), podendo ocorrer a rescisão da medida e posterior oferecimento da denúncia no caso de descumprimento. Tais condições estão previstas no art. 28-A, caput, incisos I a V, do CPP, sendo elas: (i) a reparação do dano ou a restituição da coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo; (ii) a renúncia voluntária a bens e direitos indicados pelo Ministério Público, como instrumentos, produto ou proveito do crime; (iii) a prestação de serviços à comunidade em período correspondente à pena mínima cominada ao crime, diminuída de um a dois terços; (iv) o pagamento de prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social, com preferência para aquelas destinadas à proteção de bens jurídicos iguais ou semelhantes aos violados na infração penal e, por fim, (v) o cumprimento, por prazo determinado, de outra exigência indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
4 A CELEBRAÇÃO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL PELA PESSOA JURÍDICA
É evidente que as normas constantes no Código de Processo Penal foram direcionadas às pessoas físicas. Nessa mesma lógica, o acordo de não persecução penal, o qual foi incorporado ao CPP em 2019, representa em seu texto, claramente, um negócio jurídico extrajudicial celebrado entre pessoas naturais. No entanto, não existe nenhuma restrição legal à celebração do acordo com pessoas jurídicas, o que indica a possibilidade de recorrer à medida despenalizadora quando as infrações penais forem atribuídas a entes coletivos.
No entanto, é válido destacar que a responsabilização penal das pessoas jurídicas só é admitida nos casos de crimes contra o meio ambiente, tendo em vista que a Lei de Crimes Ambientais é a única previsão infraconstitucional que possibilita tal responsabilização.
Nessa linha, a aplicação do ANPP às pessoas jurídicas pode ser reforçada, considerando que grande parte dos crimes ambientais previstos na Lei nº 9.605/98 e nas legislações especiais atendem aos três dos requisitos mencionados anteriormente: (i) não estão sujeitos à transação penal nos Juizados Penais Criminais; (ii) não são praticados com violência ou grave ameaça e (iii) possuem pena mínima inferior a quatro anos (9). É o caso dos artigos 30, 33, 34, 35, 38, 38-A, 39, 40, 41, 42, 54, 56, 61, 62, 63, 66, 67, 68, 69 e 69-A da Lei de Crimes Ambientais, dos artigos 15 e 16 da Lei de Agrotóxicos e do artigo 50 da Lei do Parcelamento do Solo Urbano.
Cumpre salientar que, diante da ausência de legislação processual específica para a pessoa jurídica, alguns desafios podem ser observados, sendo a hermenêutica utilizada para adequar a aplicação da medida despenalizadora aos entes coletivos.
Nesse sentido, quanto ao inciso V do art. 28-A, caput, que autoriza o Ministério Público a estabelecer outras condições adequadas ao caso, defende-se a possibilidade de impor obrigações específicas às pessoas jurídicas, tais como: suspensão de atividades econômicas ou industriais potencialmente degradadoras; compromisso de interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade com potencial poluidor; e proibição de contratar com o Poder Público ou receber subsídios e doações[14].
Outro aspecto relevante é a condição de prestar serviços à comunidade. Sobre esse tema, alguns defendem a dispensa dessa obrigação ao sustentarem a incompatibilidade do instituto com o seu cumprimento pela pessoa jurídica. Em sentido contrário, defende-se a permanência dessa condição, uma vez que a própria Lei nº 9.605/98 permite a prestação de serviços pelo ente coletivo, nos termos do art. 23, incisos I a IV:
A prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica consistirá em: I - custeio de programas e de projetos ambientais; II - execução de obras de recuperação de áreas degradadas; III - manutenção de espaços públicos; IV - contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.
Ademais, pode-se destacar a exigência de confissão formal e circunstanciada do investigado para firmar o acordo. No caso da PJ, a empresa deve verificar internamente como ocorreu a prática delitiva e admitir, por escrito, na fase da investigação criminal, a responsabilidade pela infração cometida. Vale evidenciar que a confissão formal, enquanto requisito obrigatório para o ANPP, configura tema controvertido, o que será abordado no tópico seguinte.
5 REFLEXÕES RELATIVAS À CONFISSÃO FORMAL
Sobre esse ponto, é de suma importância mencionar a existência de controvérsia a respeito da constitucionalidade desse requisito, tendo em vista uma suposta violação ao princípio da presunção de inocência e à prerrogativa da não autoincriminação. De modo contrário, defende-se a adequação da medida com as normas constitucionais, uma vez que a realização do acordo com o Parquet não é obrigatória, podendo o investigado seguir a via mais benéfica e adequada aos seus interesses.
Nesse contexto, retomando a análise do HC 185.913/SP, observa-se que o Supremo Tribunal Federal entendeu a confissão no âmbito do ANPP como uma manifestação da autonomia do acusado, que poderá decidir pela celebração do acordo a partir da análise dos aspectos positivos e negativos, com o apoio de seu defensor, sem que a confissão eventualmente prestada possa influenciar de forma negativa uma futura ação penal.
Sob essa ótica, o Relator Gilmar Mendes defende, em seu voto, que a confissão exigida para a celebração do acordo de não persecução penal não possui finalidade probatória, nem pode ser utilizada para fundamentar eventual condenação em caso de descumprimento do acordo, pois não representa reconhecimento jurídico de culpa, além de ser retratável e estar vinculada exclusivamente aos benefícios pactuados. Assim, para o em. Ministro, é a utilização indevida da confissão após o descumprimento do acordo, e não o simples fato de sua exigência, que caracteriza a violação ao direito à não autoincriminação, permanecendo válido, portanto, o requisito da confissão[15].
Outro debate associado à exigência da confissão está relacionado ao fato de que ela pode ser utilizada de forma estratégica com o objetivo de evitar a prolongação da litigiosidade.
Ressalta-se que a celebração e o cumprimento do acordo não constituirão antecedentes criminais, nos termos do art. 28-A, § 12, do CPP. Nesse sentido, a realização da medida, em detrimento da propositura da ação penal, pode revelar-se mais vantajosa para a imagem da pessoa jurídica, pois, ainda que sua inocência venha a ser comprovada ao final do processo, a simples tramitação de uma ação penal pode gerar registros em seus antecedentes, o que é capaz de prejudicar o regular exercício de determinadas atividades empresariais.
Assim, mesmo o acusado institucional que se considera inocente pode optar por não levar o processo até o fim ao avaliar que o custo de oportunidade do acordo é menor do que o tempo, o desgaste e os riscos envolvidos na persecução penal, inclusive a possibilidade de erro no julgamento[16]. Com isso, a empresa investigada seria incentivada à admitir falsamente o cometimento de determinada infração.
Por outro lado, em casos de empresas que reconhecem o dano e buscam reestruturar suas práticas, a confissão pode operar como um marco público de mudança institucional. Nesse sentido, o ANPP pode fortalecer a reputação ambiental da empresa, diferentemente da lógica puramente litigiosa, que tende a se prologar.
6 CONCLUSÃO
Conclui-se, portanto, que diante da fragmentação inerente às decisões tomadas por pessoas jurídicas, a qual dificulta a identificação de uma pessoa física apta a assumir a responsabilidade pelos atos praticados em nome da empresa, torna-se necessário que o processo penal brasileiro reconheça e acomode essa realidade.
Nesse sentido, a responsabilização penal da pessoa jurídica é cabível e constitucionalmente admitida, sendo a aplicação do Acordo de Não Persecução Penal aos crimes ambientais praticados por essas instituições compatível com a lógica de uma Justiça Penal Consensual, voltada à promoção da celeridade, à redução da sobrecarga do Poder Judiciário e à solução de conflitos sem a imposição de penas privativas de liberdade.
Embora a aplicação do ANPP sofra críticas, especialmente diante da exigência de confissão, sua utilização em relação às pessoas jurídicas, nos casos de crimes ambientais, mostra-se vantajosa por possibilitar o diálogo entre o Ministério Público e o ente empresarial para a construção de uma solução viável ao empresário, ao mesmo tempo em que assegura o cumprimento mais eficiente das funções retributiva e preventiva do Direito Penal.
Por fim, embora essa lógica do ANPP favoreça maior eficiência, ela ainda carece de maior densidade normativa no ordenamento brasileiro. Nesse sentido, para reforçar a sua aplicação pelo Ministério Público nos casos que envolvem pessoas jurídicas, é necessário o fortalecimento da sua base legal por meio da instituição de um subsistema próprio de imputação, com regras específicas relativas à ilicitude, à culpabilidade e ao procedimento penal aplicável ao ente coletivo, alcançado, portanto, maior efetividade no sistema penal brasileiro[17].
REFERÊNCIAS
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SANTOS, Jaqueline de Andrade dos. O Acordo de Não Persecução Penal e a aplicabilidade nos crimes cometidos por pessoas jurídicas. Revista da ESMESC, v. 29, n. 35, p. 241–267, 2022. Disponível em: <https://revista.esmesc.org.br/re/article/view/318>. Acesso em: 8 dez. 2025.
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TRIVOSONNO, Alexandre. A teoria da estrutura hipotética das normas jurídicas de Kelsen: características, evolução e balanço de sua importância. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 121, p. 73–120, jul./dez. 2020.
Ana Luiza Pereira Caldeira, Marina Rios de Oliveira e Yasmin Machado Braga são graduandas em Direito na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
NOTAS
[1] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Edição 1960
[2] TRIVOSONNO, Alexandre. A teoria da estrutura hipotética das normas jurídicas de Kelsen: características, evolução e balanço de sua importância. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 121, p. 73-120, jul./dez. 2020.
[3] IENNACO, Rodrigo. A celebração de acordo de não persecução penal entre o Ministério Público e a pessoa jurídica responsável por crime ambiental, p.9
[4] IENNACO, Rodrigo. A celebração de acordo de não persecução penal entre o Ministério Público e a pessoa jurídica responsável por crime ambiental, p. 10
[5] GALVÃO, Fernando. Modelo brasileiro de imputação de responsabilidade penal para pessoas jurídicas. Cadernos de Dereito Actual, 2024, pp. 83-112.
[6] GALVÃO, Fernando. Modelo brasileiro de imputação de responsabilidade penal para pessoas jurídicas. Cadernos de Dereito Actual, 2024, pp. 83-112.
[7] GALVÃO, Fernando. Modelo brasileiro de imputação de responsabilidade penal para pessoas jurídicas. Cadernos de Dereito Actual, 2024, pp. 83-112.
[8] STF. Recurso Extraordinário (RE) 548.181/PR, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 6 ago. 2013. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7087018
[9] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Conceito e Classificação das Constituições. In: FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2025. p. 43-36.
[10] ALVES, Leonardo B. M. Contexto da Justiça Penal Consensual e Mitigação ao Princípio da Obrigatoriedade. In: ALVES, Leonardo B. M. Manual de Processo Penal. São Paulo: Editora Juspodivm, 2021. p. 341-342.
[11] ALVES, Leonardo B. M. Acordo de Não Persecução Penal: breve escorço histórico, conceito e natureza jurídica. In: ALVES, Leonardo B. M. Manual de Processo Penal. São Paulo: Editora Juspodivm, 2021. p. 342-345.
[12] Nesse ponto, a CONAMP ajuizou a ADI n º. 6.305 questionando o art. 28-A da Lei nº 13.964/2019, sob fundamento de que “a escolha do legislador de conferir ao magistrado esse papel de controlador do acordo de não persecução penal, da forma como foi posta, é medida flagrantemente inconstitucional, por violar o sistema acusatório, a autonomia do membro do Ministério Público e a imparcialidade objetiva do magistrado”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.305. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, DF, 20 jan. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5844852. Acesso em: 8 dez. 2025.
[13] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal - 12ª edição. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2024. Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/104402244/v12/page/I. Acesso em 8 dez. 2025.
[14] SANTOS, Jaqueline de Andrade dos. O Acordo de Não Persecução Penal e a Aplicabilidade nos Crimes Cometidos por Pessoas Jurídicas. Revista da ESMESC. v. 29, n. 35, p. 241–267, 2022. Disponível em: https://revista.esmesc.org.br/re/article/view/318. Acesso em: 8 dez. 2025.
[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 185.913/DF. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgado em 18 set. 2024. Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, 2024. Disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp. Acesso em: 9 dez. 2025.
[16] SIMÃO, Fernando Geraldo; CRUZ, Rogério Schietti Machado. A aplicabilidade do Acordo de Não Persecução Penal aos crimes praticados por pessoa jurídica. Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, São Paulo, v. 26, p. 218–231, 2025. Acesso em: 9 dez. 2025.
[17]. MORAES, Rodrigo Iennaco. A celebração de acordo de não persecução penal entre o Ministério Publico e a Pessoa Jurídica responsável por crime ambiental. Acesso em: 09.Dez.2025







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