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Compliance ambiental e responsabilidade penal da pessoa jurídica entre a culpabilidade organizacional e o greenwashing penal

Atualizado: há 2 dias




1. INTRODUÇÃO


A expansão dos riscos sócio ambientais associados à atividade empresarial, especialmente em setores como mineração, energia, agronegócio e indústria extrativa, recolocou no centro do debate jurídico a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes ambientais. No contexto brasileiro, a consagração constitucional da responsabilização criminal de entes coletivos, prevista no art. 225, § 3º, da Constituição da República, e a disciplina infraconstitucional da Lei nº 9.605/1998 representam um marco de ruptura em relação ao modelo clássico de Direito Penal, historicamente pensado para indivíduos. A partir desse novo desenho normativo, a responsabilização de empresas por danos ecológicos passou a exigir não apenas a adaptação de categorias dogmáticas tradicionais, mas também a revisão de estratégias de prevenção e de gestão de riscos no âmbito organizacional. Paralelamente, foi difundido no meio corporativo o discurso do compliance como instrumento privilegiado de conformidade normativa, integridade e governança. No campo ambiental, proliferam programas, códigos de conduta, canais de denúncia e estruturas internas voltadas, ao menos em tese, à identificação, monitoramento e mitigação de riscos ecológicos. Tais mecanismos são frequentemente apresentados como expressão de uma cultura empresarial responsável, afinada com o princípio da prevenção e, sobretudo, com o princípio da precaução, que exige atuação antecipatória diante de perigos graves ou irreversíveis ao meio ambiente. Nesse cenário, é inevitável indagar de que modo esses programas repercutem na esfera penal, em especial na imputação e na dosimetria da responsabilidade da pessoa jurídica por ilícitos ambientais.


A prática forense revela, contudo, uma ambivalência. De um lado, sustenta-se que a existência de estruturas robustas de compliance ambiental seria indicativa de menor reprovabilidade da conduta empresarial, podendo atenuar a culpabilidade organizacional e, por conseguinte, a sanção penal. De outro, é possível observar que, não raras vezes, esses programas são invocados em juízo como estratégia defensiva, com base em documentos, políticas internas e treinamentos que nem sempre se traduzem em práticas efetivas de controle e supervisão. Em tais hipóteses, o compliance corre o risco de operar mais como escudo retórico do que como instrumento real de prevenção, contribuindo para uma espécie de greenwashing penal: a produção de uma aparência de compromisso ambiental destinada a suavizar a responsabilização criminal, sem que haja alteração substantiva da lógica de funcionamento da organização.


É justamente nesse ponto que se situa o problema: em que medida os programas de compliance ambiental implementados por pessoas jurídicas no Brasil têm funcionado, no âmbito da responsabilização penal por crimes ambientais, como efetivos instrumentos de prevenção e de concretização da culpabilidade organizacional, ou se vêm sendo utilizados predominantemente como mecanismos de defesa simbólica, configurando um cenário de greenwashing penal? A partir dessa problematização, é possível partir da hipótese de que, embora o discurso oficial associe o compliance ambiental à redução de riscos e ao fortalecimento da cultura de integridade, na prática forense tais programas tendem a ser manejados, em larga medida, como elementos de atenuação ou até de neutralização da censura penal, muitas vezes com base em uma análise formalista que privilegia a existência documental de estruturas internas, sem investigar sua efetividade concreta. O objetivo geral consiste em analisar criticamente o papel desempenhado pelos programas de compliance ambiental na responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais, buscando verificar se eles operam como ferramentas genuínas de prevenção ou se se prestam, majoritariamente, à construção de um escudo simbólico de impunidade.


Em suma, cabe demonstrar que a simples existência de programas de compliance ambiental não pode ser tomada, de forma automática, como indício de baixa reprovabilidade da conduta empresarial, sob pena de reforçar o caráter simbólico e seletivo do Direito Penal ambiental. Ao contrário, a consideração do compliance na responsabilização da pessoa jurídica deve estar condicionada à comprovação de sua efetividade e de sua capacidade real de influenciar decisões, rotinas e estruturas de poder dentro da organização, sob pena de se transformar em mais um mecanismo de greenwashing penal, incompatível com a promessa constitucional de proteção adequada e efetiva ao meio ambiente.



2.RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA POR CRIMES AMBIENTAIS


A responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais representa uma das principais inovações do constitucionalismo brasileiro de 1988, ao deslocar a tutela penal para além da figura tradicional do indivíduo e reconhecer o meio ambiente como bem jurídico de natureza difusa, cuja proteção exige respostas normativas reforçadas. A Constituição, ao prever expressamente a responsabilização penal e administrativa de pessoas jurídicas por condutas lesivas ao meio ambiente, rompe com o dogma clássico da inimputabilidade penal dos entes coletivos, abrindo espaço para uma dogmática própria de culpabilidade organizacional e para a construção de instrumentos específicos de prevenção e controle de riscos ambientais no plano corporativo.1



2.1.Marco Constitucional e Legal


O ponto de partida é o art. 225, § 3º, da Constituição, segundo o qual “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos”, dispositivo que consagra, em termos expressos, a possibilidade de responsabilização criminal de pessoas jurídicas por crimes ambientais e indica a coexistência, no mesmo fato, de consequências civis, administrativas e penais. A doutrina ambientalista destaca que essa previsão constitucional não apenas legitima a imputação penal aos entes coletivos, como também revela uma opção político-criminal pela centralidade da prevenção e pela necessidade de instrumentos sancionatórios aptos a enfrentar a dimensão estrutural e econômica da danosidade ambiental.2  No plano infraconstitucional, a Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) materializa essa diretriz ao prever, em sua parte geral, regras específicas sobre a responsabilização da pessoa jurídica (arts. 2º e 3º) e, na parte especial, um catálogo de tipos penais ambientais aplicáveis a qualquer “pessoa” como sujeito ativo, admitindo a responsabilização de entes coletivos por condutas lesivas ao meio ambiente. O art. 3º estabelece que as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade, fórmula que explicita o vínculo entre a atuação de pessoas físicas e a esfera de imputação do ente coletivo.3 As sanções penais aplicáveis às pessoas jurídicas, por sua vez, são disciplinadas no art. 21 da Lei nº 9.605/1998, que prevê multa, penas restritivas de direitos (como suspensão parcial ou total de atividades, interdição temporária de estabelecimentos, proibição de contratar com o Poder Público) e prestação de serviços à comunidade, isolada, cumulativa ou alternativamente, delineando um modelo sancionatório voltado mais à recomposição, reestruturação e inibição de práticas lesivas do que à aflição físico-pessoal típica das penas aplicáveis a indivíduos.


A doutrina realça que a previsão constitucional e legal da responsabilidade penal da pessoa jurídica em matéria ambiental se insere em um contexto mais amplo de construção de um “microssistema” de responsabilidade ambiental, no qual convivem, de forma articulada, responsabilidades civil, administrativa e penal, cada qual com funções próprias, mas convergentes na proteção  do  meio  ambiente  como  bem  de  titularidade  transindividual.4  Ainda  que  a constitucionalidade da responsabilização penal da pessoa jurídica tenha sido, inicialmente, alvo de resistência, sobretudo com fundamento na ausência de culpabilidade em entes desprovidos de vontade psicológica, a posição hoje dominante na doutrina e na jurisprudência admite a imputação penal de entes coletivos em matéria ambiental, a partir de uma releitura das categorias clássicas de tipicidade, ilicitude e culpabilidade, de modo a adaptá-las à realidade das organizações e à lógica da sociedade de risco.


2.2.Fundamentos teóricos da culpabilidade organizacional


O reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais exige a construção de um conceito próprio de culpabilidade organizacional, distinto da culpabilidade individual fundada na reprovação ético-pessoal da conduta do agente. Não é possível, em termos dogmáticos, simplesmente transpor para a pessoa jurídica a estrutura psicológica de dolo e culpa pensada para indivíduos, razão pela qual a doutrina tem procurado identificar, no plano organizacional, parâmetros normativos que permitam avaliar a reprovação da conduta da empresa enquanto centro de decisão e de poder. Nesse sentido, teorias como a do “defeito de organização” e a da “cultura corporativa” propõem que a culpabilidade da pessoa jurídica decorra da ausência de estruturas adequadas de controle, supervisão e gestão de riscos, ou da existência de uma cultura interna que tolera ou incentiva práticas lesivas ao meio ambiente.5 No contexto brasileiro, autores de Direito Ambiental e de Direito Penal econômico têm sublinhado que a responsabilização penal de empresas por danos ecológicos só se legitima se afastada qualquer forma de responsabilidade objetiva, sendo imprescindível identificar, no nível da organização, uma falha relevante de dever de cuidado ambiental, traduzida em insuficiência de procedimentos de controle, omissão na avaliação de riscos, tolerância institucional à violação de normas ambientais ou negligência na adoção de medidas de prevenção e mitigação de danos.6 Essa perspectiva dialoga com a ideia de que a culpabilidade da pessoa jurídica, em matéria ambiental, deve ser concebida como uma forma de “autorresponsabilidade” da organização, em que o ente coletivo responde não apenas pelos atos de seus dirigentes, mas pela maneira como estrutura os seus processos decisórios, define prioridades econômicas, aloca recursos para a gestão ambiental e organiza canais de informação e controle. Conforme sintetiza a doutrina que aplica ao Direito brasileiro o modelo construtivista de autorresponsabilidade, a culpabilidade empresarial decorre da opção consciente por um modelo de negócio que assume riscos desproporcionais ou negligencia deveres de segurança e de proteção ambiental, o que permite imputar à empresa, e não apenas aos seus administradores, a reprovação penal pelo dano causado.


A partir dessa concepção, o dever de organização e de controle ganha centralidade: a empresa que atua em setores de alto risco ambiental tem o encargo de estruturar sistemas internos de gestão voltados à identificação, avaliação e mitigação de riscos, o que inclui a adoção de políticas claras, procedimentos operacionais, canais de denúncia e mecanismos de monitoramento contínuo. A ausência ou deficiência desses mecanismos pode ser lida como expressão de culpa organizacional, ao passo que sua existência e efetiva implementação podem, em tese, influir na medida da reprovação, reduzindo a culpabilidade atribuída à pessoa jurídica, desde que demonstrada sua eficácia concreta na prevenção de ilícitos. É justamente nesse ponto que o compliance ambiental se conecta à dogmática da responsabilidade penal da pessoa jurídica: programas de integridade e de gestão de riscos ambientais podem ser compreendidos como materialização institucional do dever de organização, servindo, ao mesmo tempo, como critério para afirmar a existência de culpabilidade (quando ausentes ou meramente formais) e como elemento potencialmente relevante para atenuá-la (quando robustos, anteriores ao fato e efetivamente implementados).


3.COMPLIANCE AMBIENTAL: ENTRE PREVENÇÃO E DEFESA PENAL


A consolidação do discurso do compliance no cenário empresarial brasileiro alcançou também o campo ambiental, no qual programas de integridade passaram a ser apresentados como condição de competitividade, requisito em termos de ajuste de conduta e, cada vez mais, como elemento relevante no debate sobre responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes ambientais.7 Em paralelo, a literatura recente sobre responsabilidade penal da pessoa jurídica destaca a adoção de mecanismos de compliance ambiental como instrumento essencial para a construção de uma cultura de responsabilidade corporativa alinhada ao desenvolvimento sustentável e à prevenção de ilícitos ecológicos. No plano dogmático, esses programas se conectam diretamente ao dever de organização e de controle que fundamenta a culpabilidade da pessoa jurídica: quanto mais elevados os riscos ambientais inerentes à atividade econômica, maior a exigência de que a empresa estruture mecanismos internos capazes de identificar, monitorar e mitigar tais riscos de forma contínua.


3.1.Conceito e características do compliance ambiental


Embora a noção de compliance tenha surgido, em grande medida, associada à prevenção da corrupção e de ilícitos econômicos, sua transposição para o Direito Ambiental decorre da percepção de que a conformidade normativa, nesse campo, implica não apenas evitar infrações pontuais, mas gerir um conjunto complexo de riscos difusos e de efeitos potencialmente irreversíveis sobre bens de titularidade transindividual. 8


Nesse contexto, entende-se por compliance ambiental o conjunto estruturado de políticas, procedimentos, rotinas de monitoramento, canais de denúncia, treinamentos e mecanismos de controle destinados a assegurar que a atuação empresarial se mantenha em consonância com a legislação ambiental aplicável, com os condicionantes de licenciamento e com padrões técnicos de segurança, incorporando, ainda, parâmetros de melhores práticas e de autorregulação setorial. A literatura especializada sublinha que, diferentemente de uma compreensão meramente formal, o compliance ambiental supõe a internalização, pela organização, dos princípios da prevenção e da precaução como “axiomas” estruturantes, exigindo vigilância constante sobre os impactos ambientais das atividades e uma disposição institucional de agir antes da ocorrência do dano.9 Nessa linha, programas efetivos de compliance ambiental tendem a incluir mapeamento sistemático de riscos, auditorias internas e externas periódicas, protocolos de resposta a incidentes, procedimentos claros de parada segura de operações e mecanismos para revisão contínua de processos produtivos à luz de novos conhecimentos científicos e tecnológicos.


3.2. Funções declaradas: prevenção, gestão de riscos e cultura organizacional


Do ponto de vista normativo e discursivo, os programas de compliance ambiental são apresentados como instrumentos vocacionados a prevenir infrações, reduzir a probabilidade de ocorrência de danos ecológicos e fomentar uma cultura organizacional orientada à sustentabilidade. A doutrina que analisa a responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais costuma enfatizar que a eficácia da tutela penal depende da capacidade das empresas de incorporarem, em sua governança, mecanismos de controle interno que vão além do mero cumprimento mínimo das normas, buscando níveis de proteção superiores aos padrões regulatórios.


Nesse sentido, duas funções declaradas aparecem com frequência. Em primeiro lugar, a função preventiva, pela qual o compliance ambiental é concebido como uma forma de antecipar a atuação do Estado, criando dentro da própria empresa uma estrutura de monitoramento e correção que reduz a necessidade de intervenção repressiva posterior. Em segundo lugar, a função de gestão de riscos, na medida em que tais programas se propõem a identificar pontos críticos das operações empresariais, estabelecer limites operacionais seguros, definir responsabilidades internas e criar fluxos de comunicação capazes de garantir que informações relevantes sobre perigo ambiental cheguem, tempestivamente, aos centros decisórios. Além dessas dimensões, parte da literatura e de documentos institucionais atribui ao compliance ambiental uma função cultural, entendida como a promoção de valores de integridade, transparência e responsabilidade socioambiental na rotina dos trabalhadores e gestores, por meio de treinamentos, códigos de conduta e incentivos internos à denúncia de irregularidades.10 A expectativa é que, a partir de tais mecanismos, a empresa desenvolva uma “cultura de conformidade ambiental” na qual práticas lesivas deixem de ser toleradas ou normalizadas, mesmo quando possam gerar ganhos econômicos de curto prazo.


3.3. Funções práticas no processo penal: o compliance como argumento defensivo


Se, no plano ideal, o compliance ambiental se apresenta como instrumento de prevenção e de gestão de riscos, a experiência prática em investigações e ações penais revela uma dimensão adicional: a utilização desses programas como argumento defensivo por parte de pessoas jurídicas imputadas pela prática de crimes ambientais.


Em diversos casos, empresas investigadas por desastres ou por danos ambientais relevantes invocam a existência de programas de compliance, manuais, códigos de conduta e estruturas internas de controle como prova de que teriam adotado todas as cautelas razoáveis para evitar o resultado, sustentando, assim, a inexistência de culpa organizacional ou, ao menos, a redução sensível da reprovabilidade de sua conduta.11 Nessa linha, o compliance ambiental passa a ser apresentado como indício de boa-fé corporativa, de compromisso com a legislação e de distanciamento, no plano institucional, em relação a decisões pontuais que teriam levado ao evento danoso. A literatura crítica tem alertado para o risco de que essa dinâmica converta programas de compliance em verdadeiros escudos penais, especialmente quando a análise judicial se limita a verificar a existência documental de políticas e procedimentos, sem investigar sua efetividade concreta ou o grau de internalização, pela organização, das rotinas de controle ali previstas.12 Ao invés de funcionar como critério para aferir a culpabilidade da pessoa jurídica, na medida em que sua ausência ou precariedade indicaria defeito de organização, e sua presença efetiva, uma redução justificável de reprovabilidade, o compliance é muitas vezes manejado como uma espécie de “prova negativa” de culpa, independentemente de sua real capacidade de prevenir o ilícito.


Estudos recentes sobre greenwashing no Direito brasileiro mostram que a construção de uma imagem pública “verde” por meio de relatórios, certificações e campanhas de comunicação nem sempre corresponde a mudanças estruturais nas práticas empresariais, podendo configurar uma estratégia de maquiagem ambiental que confunde consumidores, investidores e o próprio poder público.13 A analogia com o campo penal é evidente: quando programas de compliance ambiental são elaborados e divulgados prioritariamente para fins reputacionais ou de gestão de risco jurídico, sem efetivo compromisso com a prevenção de danos, corre-se o risco de constituir uma forma de greenwashing penal, na qual a aparência de conformidade serve para mitigar ou neutralizar a responsabilização criminal, sem que o padrão de risco subjacente à atividade econômica seja, de fato, transformado. Por outro lado, experiências como a exigência de programas de compliance ambiental em Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) e em acordos celebrados pelo Ministério Público apontam para uma tentativa de condicionar benefícios jurídicos à implementação de estruturas internas robustas, fiscalizadas e sujeitas a monitoramento externo, justamente para evitar que tais programas se tornem “sham programs” ou programas de fachada.14 Nesses contextos, o compliance deixa de ser apenas um argumento defensivo apresentado unilateralmente pela empresa e passa a integrar obrigações negociadas e acompanhadas por órgãos de controle, o que pode reduzir, embora não elimine, o risco de uso meramente simbólico desses instrumentos no âmbito penal.


4.   COMPLIANCE AMBIENTAL NA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA


A partir da ideia de culpabilidade organizacional, o compliance ambiental pode ser compreendido como um critério relevante de aferição do dever de organização e de controle. Em linhas gerais, quanto maior o risco ambiental inerente à atividade empresarial, mais intensa deve ser a estrutura de prevenção, monitoramento e resposta adotada pela pessoa jurídica; a ausência ou precariedade desses mecanismos tende a indicar um defeito de organização imputável à empresa, ao passo que sua existência e efetiva implementação podem, em tese, justificar alguma redução da reprovabilidade.15 A literatura recente que aproxima responsabilidade penal da pessoa jurídica e compliance ambiental destaca justamente esse duplo papel: de um lado, programas de integridade funcionam como materialização institucional do dever de cuidado; de outro, sua inexistência ou seu caráter meramente formal reforçam a culpa da organização, ao evidenciar que riscos relevantes não foram devidamente geridos.16


No plano normativo, embora a Lei nº 9.605/1998 não trate expressamente de programas de compliance, a expansão da agenda de integridade, sobretudo após a Lei nº 12.846/2013 e iniciativas como o Projeto de Lei nº 5.442/2019, que propõe regulamentar programas de conformidade ambiental para atividades potencialmente lesivas, reforça a expectativa de que a pessoa jurídica disponha de mecanismos estruturados de prevenção, detecção e remediação de ilícitos ambientais.17 Na prática forense, porém, o uso do compliance na responsabilização penal da pessoa jurídica tem se revelado ambivalente. Em muitos casos, a simples existência documental de códigos, manuais e canais de denúncia é invocada como prova de “boa-fé” corporativa e de ausência de culpa, sem que haja investigação consistente sobre sua efetividade concreta ou sobre a forma como esses instrumentos atuaram ou deixaram de atuar no caso concreto.18


Assim, o que em teoria deveria funcionar como parâmetro qualificado de culpabilidade organizacional tende, não raro, a ser convertido em um argumento genérico de isenção de responsabilidade, deslocando o debate do funcionamento real do sistema de gestão de riscos para a mera comprovação de que a empresa “possui um programa de compliance”, independentemente de sua aplicação concreta ao risco que se materializou.


5.GREENWASHING PENAL E PROGRAMAS DE FACHADA


O fenômeno do greenwashing surgiu, originalmente, para descrever estratégias de comunicação que criam uma imagem artificial de sustentabilidade, ocultando ou minimizando impactos ambientais negativos de produtos e serviços.19 Transposto para o campo penal, pode-se falar em “greenwashing penal” quando a pessoa jurídica elabora e divulga programas de compliance ambiental mais voltados à produção de uma aparência de conformidade, útil para fins reputacionais e para a defesa em processos, do que à efetiva prevenção de danos ecológicos. Essa situação se caracteriza, em geral, por programas elaborados por consultorias externas, pouco integrados à rotina da empresa, desprovidos de autonomia, orçamento e poder de veto, e que não produzem respostas efetivas a alertas internos ou a laudos técnicos sobre riscos relevantes.20

 

A literatura sobre greenwashing no Direito brasileiro alerta que, ao mascarar práticas insustentáveis sob um discurso “verde”, a empresa não apenas desinforma consumidores e investidores, como também fragiliza a atuação do próprio Estado, dificultando a identificação de riscos e a adoção tempestiva de medidas de controle.21 Quando programas de compliance ambiental são usados, em processos penais, como mera retórica para afastar a culpabilidade da pessoa jurídica, sem correspondência em práticas de gestão de riscos, o resultado é semelhante: reforça-se o caráter simbólico do Direito Penal ambiental e consolida-se um padrão de seletividade que tende a favorecer empresas mais estruturadas, capazes de investir em comunicação e em “compliance de papel”.



6. CRITÉRIOS PARA DIFERENCIAR COMPLIANCE AUTÊNTICO DE COMPLIANCE COSMÉTICO


Para que o compliance ambiental possa ser levado a sério na responsabilização penal da pessoa jurídica, é necessário estabelecer critérios mínimos de autenticidade, que permitam ao Ministério Público e ao Judiciário distinguir programas efetivos de iniciativas meramente cosméticas. A pesquisa sobre o tema aponta alguns elementos recorrentes: (i) existência de estrutura de compliance com autonomia funcional, acesso direto à alta administração e recursos financeiros próprios; (ii) mapeamento sistemático de riscos ambientais relevantes, com registro de análises e reavaliações periódicas; (iii) canais de denúncia acessíveis e mecanismos de proteção a denunciantes; (iv) resposta documentada a alertas internos, incidentes e pareceres técnicos; e (v) integração do programa de compliance às decisões estratégicas da empresa, e não apenas aos treinamentos formais.22


No âmbito da atuação estatal, isso implica deslocar o foco da simples comprovação da existência formal de um programa para a análise de sua trajetória concreta: desde quando foi implantado, quais riscos cobria, como lidou com incidentes anteriores, que medidas corretivas foram adotadas e de que forma influenciou decisões que antecederam o dano examinado no processo. Iniciativas como o PL nº 5.442/2019, ao enfatizar a necessidade de fiscalização do funcionamento efetivo dos programas de conformidade ambiental, caminham nessa direção ao sugerir que benefícios legais só sejam concedidos quando comprovada a materialidade do compliance.23


A partir desses parâmetros, é possível sustentar que o compliance pode influir na medida da culpabilidade organizacional, inclusive com efeitos atenuantes ou como condição para acordos penais, mas apenas quando demonstrada sua efetividade concreta em relação ao risco que se materializou. Ao contrário, programas implementados apenas após o fato, ou que se revelem inoperantes diante de alertas internos, devem ser desconsiderados como argumento de redução de reprovação, podendo até reforçar a culpa da organização ao evidenciar uma estratégia de fachada.



7.CONCLUSÃO


O exame da responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes ambientais e do papel dos programas de compliance permite concluir que tais instrumentos ocupam uma posição estruturalmente ambígua: podem funcionar tanto como expressão do dever de organização e de uma cultura de prevenção, quanto como mecanismos de greenwashing penal, destinados a suavizar a resposta sancionatória sem alterar a lógica de produção de riscos. A hipótese inicial de que, no contexto brasileiro, o compliance ambiental é frequentemente manejado como argumento defensivo, com análise predominantemente formal por parte dos tribunais, encontra respaldo na literatura e nas experiências relatadas, embora se observe movimento recente no sentido de exigir maior efetividade desses programas.24


Do ponto de vista dogmático, a consideração do compliance na responsabilização penal da pessoa jurídica deve estar ancorada na noção de culpabilidade organizacional: a ausência ou precariedade de mecanismos de gestão de riscos é elemento que fundamenta a culpa da empresa; a existência de programas robustos, anteriores ao fato e efetivamente implementados pode justificar uma redução da reprovabilidade, mas não uma presunção automática de ausência de culpa. A chave, portanto, está em deslocar a análise do plano puramente formal para o plano material, exigindo-se demonstração de que o compliance ambiental influenciou decisões, orientou condutas e foi capaz de reagir a alertas internos. Essa exigência é condição para que o compliance deixe de ser mero escudo simbólico e se converta, de fato, em instrumento de prevenção, compatível com a promessa constitucional de proteção adequada e efetiva ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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SOARES, Inês Virgínia Prado; VENTURINI, Otavio. Compliance ambiental: um horizonte muito além do combate à corrupção. Artigo eletrônico, 13 fev. 2022.


Ana Júlia Silva Ferreira é Advogada graduada na UFMG e mestranda do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.


NOTAS

1 MACHADO, 2015, p. 885.

2 MACHADO, 2015, p. 885; MILARÉ, 2014, p. 139.

3 ESPÍRITO SANTO, 2020, p. 4–5.

4 MILARÉ, 2009, p. 953; JANNUZZI, 2012, p. 71–72.

5 GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2010, p. 45–47; MARGRAF, 2022, p. 66–696 MILARÉ, 2014, p. 123; FREITAS; FREITAS, 2001, p. 697 SOARES; VENTURINI, 2020, p. 145–147.

8 SOARES; VENTURINI, 2020, p. 145–1479 MARTINS, 2023, p. 58–60.

10 MARTINS, 2023, p. 60–6211 ALVES, 2025, p. 8–9.

12 SOARES; VENTURINI, 2020, p. 160–162.

13 BRITO; GONÇALVES-DIAS, 2022, p. 10–13.

14 SOARES; VENTURINI, 2020, p. 165–170; MARTINS, 2023, p. 58–60.

15 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 63–65.

16 A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA POR CRIME AMBIENTAL. Revista Jurídica Eletrônica (Rio Verde), v. 6, 2025, p. 3–7.

17 JAVARO, Danielle de Almeida Troia. Compliance ambiental, práticas ESG e desenvolvimento sustentável. Dissertação – UNESP, 2024, p. 42–45.

18 SOARES, Inês Virgínia Prado; VENTURINI, Otavio. Compliance ambiental: um horizonte muito além do combate à corrupção. Consultor Jurídico, São Paulo, 13 fev. 2022, s.p.

19 BRITO, Ana Carolina Ferreira de Melo; GONÇALVES-DIAS, Sylmara Lopes Francelino. Como o direito brasileiro encara o greenwashing? Revista Direito Ambiental e Sociedade, v. 11, n. 3, p. 79–104, 2021, p. 79–82.

20 CAMARGO, Michele Machado Segala. Responsabilidade civil e compliance ambiental. Dissertação – UNISINOS, 2022, p. 145–147.

21 BRITO; GONÇALVES-DIAS, 2021, p. 90–92.

22 SOARES; VENTURINI, 2022, s.p.; CAMARGO, 2022, p. 148–150.

23 JAVARO, 2024, p. 42–45.

24 A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA POR CRIME AMBIENTAL, 2025, p. 3–8; BRITO; GONÇALVES-DIAS, 2021, p. 90–92.

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